quinta-feira

Mói, tritura, emulsiona. Separa, torna mais nítido. Tudo o que a equipa de cientistas quer é descobrir os resultados da experiência e, como tal, só quer que o dia acabe, pois sabem que no final do dia vão ter as respostas que precisão.
Não. Ainda não foi desta. Agora, é mais uma noite à espera do dia em que a experiência possa responder-lhes. E eles esperam avidamente. Esperam num sôfrego interminável. Talvez seja amanhã.
Mói, tritura, emulsiona. Separa, torna mais nítido. Talvez amanhã resulte. Talvez amanhã a cama seja o sítio ideal para se estar, pois talvez amanhã o sono venha com vontade. E talvez amanhã não hajam dores de estômago, por estarem à espera do resultado da experiência e esquecerem-se de comer. E espera-se, mais um dia. Mói, tritura, emulsiona. Mas... Não separou, não tornou mais nítido. Merda. Erro experimental. Pára, recomeça. Mas amanhã, porque hoje já não ninguém consegue aguentar a pressão da experiência.

quarta-feira

Rasgo as ruas que atravesso. Sujo a roupa com tal suor suado suando fortemente, como quem liberta toxinas e só o quer fazer: libertar toxinas. Liberto a raiva, limpo o horror, apanho a felicidade. Mas não. Pára, recomeça. Rasgo a roupa. Sujo as ruas que atravesso com tal suor suado suando fortemente, como quem liberta toxinas e só o quer fazer: libertar raiva. Liberto as toxinas, limpo a felicidade, apanho o horror. E isso sim. Ciclo vicioso, ciclo sem fim. "Today was gonna be the day, but they'll never throw it back to you. By now you should have somehow realized what you're not to do". Mas faço-o. All over again. Sento-me, deito-me, ponho-me de pernas para o ar e cabeça para baixo. E às vezes estou bem umas horas, mas acaba sempre por voltar tudo ao mesmo. E eu já tinha percebido, mas negaram-me. E eu acreditei.
Pára, recomeça. Escreve a história de novo. Disco riscado. Pedras soltas. Pés descalços. Mãos desatadas. Abraços perdidos. Beijos roubados. E eu quero cometer um erro. Quero deslizar-me. E talvez o vá fazer. Se tiver que ser, será. Vou deixar-me ir, não me vou prender, não me vou agarrar. Que a maré me leve, contra as rochas, para outros mundos, outros continentes. Se eu der à costa, azar. Se eu nunca mais for encontrado, perfeito. Se a história não puder ser decidida por mim, péssimo. E não pode.
"O jantar está pronto!". Mas eu não quero jantar, e o jantar é sopa comprada no self-service. In fact, queria ter um gira-discos. Assim jantava todos os dias um "Dark Side of The Moon", um "Master of Reality". E em dias de festa jantava, numa aparelhagem, um "The Bends", um "Ok Computer", um "Amnesiac", um "Kid A", um "Hail to the Tief", um "In Rainbows". Sei lá. Talvez nem jantasse de todo. Talvez não me alimentasse. Ou alimentava, mas continuava com as dores de estômago que tenho tido. Porque a verdade é: eu não tenho comido nada de jeito.
Vamos. Pára, recomeça. Limpo o suor, limpo as lágrimas que me escondem no escuro. Salto para o mundo. Salto o mais alto (im)possível. Oh, como eu queria secar-me. Mas está avariado. Tudo em mim está avariado. Todos os mecanismos, tudo. Está tudo descontrolado. E chega. Pára, recomeça, e não olha para trás, porque desta vez vai ser diferente. Seja com, ou sem ela.

domingo

Episódio 4

Episódio anterior

A água do chuveiro corre. A água do chuveiro lava-o. A água do chuveiro escorre pelo seu corpo. O vapor enche a casa de banho. A cortina da banheira está corrida, mas não totalmente, e o chão enche-se um pouco de água.
- Merda.
Desliga a água, pega na toalha, e limpa-se. No corredor, ouve-se:
- Porquê?
Ele salta. Percebe que vem aí sarilho. Vêm aí perguntas, e mais perguntas. Porque é que me deixaste, porque é que me pediste desculpa, não me amas... Sabe Deus as perguntas que aí virão.
- Eu só quero saber uma coisa. Pensaste em mim ou nela?
- Em ti.
E ele nem pensou duas vezes na resposta. Não precisou.
- Sabes? Fui eu que escrevi a nota que estava na porta da casa de banho. - Agora tudo faz sentido na cabeça dele. De facto, elas tinham formas de escrever parecidas. E ele deve ter confundido. - Mas causei o efeito que queria. Se ela estivesse viva, e soubesse do que se passou esta noite, ter-te-ia dito isso.
E a porta de casa é fechada com força. E ele aterra no chão da casa de banho. Agarra na embalagem de gel de banho da Vasenol e atira-a contra o espelho. O espelho parte-se, e ele pensa "boa, ao menos agora vou ter 7 anos de azar. Ao menos uma boa notícia!". Mas... Espera. Como é que ela tem a chave de casa dele?
Corre para o quarto, e escorrega, batendo violentamente com a cabeça na parede. O chão mancha-se de sangue. E ali fica ele, algumas horas, inanimado.
Por fim, acorda. Leva a mão à cabeça e segue para o quarto. Pega no telemóvel e liga-o. Telefona-lhe. Pergunta: "Como é que tinhas a minha chave de casa", por mensagem. Aguarda. O telemóvel vibra de novo. "Foi ela que mas deu.". Ele pergunta: "Porquê?". Ela responde: "Sinceramente? Para o caso de não chegares a tempo. Ela programou tudo ao segundo. Ela queria mostrar-te que te amava verdadeiramente, que era capaz de correr riscos por ti. Mas acabou por correr mal. Acabaste por não chegar a tempo. E eu amo-te, mas amava-a mais a ela. E agora odeio-te. Odeio-te por a teres deixado morrer e por teres vindo a correr para os meus braços. Odeio-te por me teres derretido ainda mais, e teres-me deixado sem opção a não ser deixar-te entrares em mim. Odeio-te, e sei que esteja onde estiver, ela também te odeia a ti. (...)".
É verdade. Ele foi horrível. Ele foi fatal. Em todos os sentidos. E deita-se sobre a cama, ainda nu, e fecha os olhos. Lembra-se da conversa.
- Eu dava tudo por ti. A minha vida, tudo o que tenho. A minha mota. A minha guitarra. O meu iPod. Dava-te a ti, por ti. - disse ele.
- Eu também dava tudo por ti - disse ela.
- Shhhh - faz um sinal com o dedo perto da boca - eu não quero que dês nada por mim. Não precisas. Eu só quero é que sejas feliz.
E ela quis mostrar-lhe que também era capaz de dar tudo por ele. Tudo. E deu. Deu o amor deles, deu  a vida dela. Deu a vida dele. Porque ele agora só quer é morrer.
Veste uma roupa qualquer que selecciona aleatoriamente do roupeiro e dirige-se à varanda da mini-sala. Abre a janela e atira-se. E morre.

(Continua)

Episódio 3

Episódio anterior

Os seus passos estão tão desengonçados que várias vezes o seu corpo balança para os lados, como se ele estivesse bêbado ou algo do género. Verdadeiramente, ele não está bêbado. E isto não é um sonho. E ele lamenta-o. Lamenta ter cometido um erro fatal. Lamenta ter cometido tal deslize.
As pessoas na rua olham-no de lado. Será um vagabundo? Será um marginal? Será que está de ressaca? Será que se drogou? As pessoas questionam-se, mas nenhuma sonha, sequer, o que aconteceu realmente. Ele mergulha, por fim, a mão no bolso (o que assusta algumas das pessoas que o olhavam naquele momento) e de lá, do fundo do bolso, tira o iPod. Procura algo. Procura algo que o faça sentir ainda pior do que já se sente. E é então que encontra: a música que os uniu. A primeira música que tinham alguma vez ouvido juntos. "You've applied the pressure, to have me crystalised". E a letra fazia sentido há umas horas, mas naquele momento ele já não se sentia cristalizado, nem tão pouco petrificado. Sentia-se um pedaço de gelatina estragada.
Caminha mais uns metros e chega ao seu prédio. Remexe nos bolsos. Papéis de pastilhas, embalagem de preservativo, chaves da mota... e cá está, por fim, as chaves de casa. As chaves que abrem e fecham portas, mas que os mistérios apenas fecha. E a noite que passara era um mistério. O que é que lhe tinha passado na cabeça? Porquê trair o amor da sua vida?
Sobe os degraus 3 a 3. Chega ao 3º andar, anda 6 metros em frente e 1 para a direita. Enfia a chave na fechadura, e o seu telemóvel vibra. Está no silêncio. Ao menos isso, há silêncio, e ele consegue ouvir-se a pensar. "Será que é a minha mãe? Será que é ela, a pedir-me explicações? Será que é o meu irmão?". Infelizmente, é a hipótese do meio. Ou pelo menos é ela. Ele rejeita a chamada, tira a capa do telemóvel e remove a bateria. Entra em casa. Silêncio. Não há um "amor, és tu?". Não há ninguém a correr para os seus braços. A casa está deserta. Porque de vez em quando ela ia lá. Dormir, estar com ele, tantas outras coisas. E, infelizmente, ninguém lavou a pilha de loiça que está acumulada no lava-loiça há já 10 dias. As moscas circundam o saco do lixo. Um fedor enche a cozinha.
Corre para o quarto. Tira a roupa, e começa a ir em direcção à casa-de-banho, mas pára à entrada da mesma. Não ia tomar banho no mesmo sítio onde tomara antes, tanto sozinho como com o amor da sua vida. O amor que morrera há 15 dias. Aquela que o tinha visto como alguém especial. E surprise surprise. Olha para a porta da casa-de-banho e está lá um papel. Diz: "Eu quero é dizer-te: Não desistas de mim. Não te percas agora". Que raio? Que aconteceu? A letra é dela. Mas... mas... Que aconteceu? Não pode ter sido ela! Ela está morta!
- Não, tu estás louco, estás com alucinações.
E mergulha no chuveiro.