quarta-feira

Ligas o carro. Partes sem olhar para trás. Metes os headphones nos ouvidos. Ligas a música. Apesar de tudo, sabes que alguém te chama, mas não abres o vidro nem olhas pelo espelho retrovisor para confirmar. Só queres pressionar o pedal e seguir em frente. É isso que fazes. Mais uma vez, foges. Não olhas para trás. Partes sem olhar para trás. Tal como "no tempo dos assassinos", tens uma força que te faz seguir em frente. Pões músicas do disco do Jorge Palma a tocar. Do melhor álbum dele. Aquele álbum que te deixa a cabeça num sítio qualquer que nem os teus olhos vêem. Aquele lugar que a tua mente cria. Aquele lugar pacífico onde ouves o mar e os passarinhos a cantar. Aquele lugar verdejante cheio de pequenos bichos do mato que tentam alcançar-te. Alguns, conseguem ultrapassar a barreira que criaste, outros perdem-se no tempo, na passagem, no processo. Uns sabem que és indefeso e avançam. De alguns gostas, e deixa-los passar, até ao momento em que te apunhalam pelas costas. Outros, escondem-se nos alimentos, no pão nosso de cada dia, naquilo que te mantém vivo todos os dias da tua vida.
Metes o pé no travão bruscamente. Deixaste em casa o mais importante. Fazes inversão de marcha e manténs uma velocidade constante 80 km/h dentro de uma localidade. Esperas não encontrar ninguém pela frente pois precisas desesperadamente daquilo que te esqueceste por cima do guarda-fatos. Ou lá dentro.
Chegas a casa, e lembras-te que deixaste as chaves no tablier. Voltas ao carro, abres a porta das traseiras à bruta e invades a casa onde já não moras. Onde moraste, um dia, mas já não queres viver lá. Nem quem lá vive te quer mais. Nem tu a ela.
Chegas ao quarto. Em cima da cama está o vestido de noiva dela. Aquele longo vestido branco que ela usou na altura em que ainda gostava de usar o cabelo solto. Porque sabia que tu gostavas de ver aqueles longos cabelos castanhos escuros a esvoaçar por trás da sua nuca. Ao lado, está o biquini que ela usou na vossa lua de mel. Abres o guarda-fatos à procura do que lá deixaste. A tua guitarra não está lá. Onde devia estar. Onde tu tinhas deixado. Aquela guitarra que usaras mil e uma vezes para compores músicas de amor, de amizade, de alegria ou tristeza. Até declarações de amor. Aquela guitarra que usaras nas melhores alturas da tua vida. Olhas melhor lá para dentro. Vêm-te tantas memórias despedaçadas pelo tempo à tua cabeça. Parece que estás a olhar para um holograma.
Ouves algo a partir na rua. Corres para a janela. Ela está a fechar o caixote do lixo. Lá dentro está a tua vida. Partida ao meio, a tua guitarra parece que tem o sorriso rasgado, a pele suja e a cara partida. Que dor tens no coração. Parece que uma seta o atravessou.
Sentas-te no chão, ao pé da cama onde fizeram sexo mil e uma noites. Onde uma árvore deu frutos. Por aquele quarto uma vez a tua filha de 5 anos actualmente (aquela filha que a tua ex-mulher conseguiu privar-te de ver) entrou a correr, sorridente, e se atirou para cima da cama, para o pequeno espaço que havia entre os seus pais.
É. Uma vida inteira aconteceu ali. E agora tens de deixar tudo para trás. Até a tua própria vida. Caída, rendida, partida, no caixote do lixo. A outra parte da tua própria vida, fica presa nas garras da mulher que um dia jurou amar-te para sempre. E assim vai ficar, até deixares de ser cobarde e começares a lutar pelas coisas que são tuas. Por direito. Pela tua vida.
- Eu quero é que ela se lixe.
E levantas-te do chão, para ligares à tua advogada.
- Não te preocupes, filha. Em breve o pai vai levar-te para casa. Para onde pertences.

A tua vida, descrita em palavras.

segunda-feira

Short story number two - Time to turn into dust

Ela olhava-o especada, petrificada, com o cabelo à frente dos olhos. Ela via algo que queria ver todos os dias da vida dela. Ela via o amor da sua vida, que vestia fato e gravata, pela primeira vez na sua vida. Com o cabelo todo despenteado, lá estava ele, mudo, surdo, cego, à espera que ela dissesse alguma coisa. Ela não conseguiu falar, e soltou apenas uma lágrima. A lágrima rolou pela sua face rosada, e caíram sobre os sapatos do seu amado. Ela olhou uma, e outra, e outra vez. Acenou. Ele não lhe dizia nada. Ela chamou-o. Ele parecia surdo. Ou mudo. Então acenou outra vez, mas nada. O outrora surdo ou mudo voltara a ser cego. Então, ela agarrou-se ao casaco dele. Puxou-o para ela. Ele parecia um saco de ossos. Ou talvez um boneco. Ela soltou um: "Não estou a gostar da brincadeira, porra!". Mas ele continuou a não responder. A agir como se fosse uma marioneta. Então pegou na guitarra. E começou a cantar e a tocar para ele. Porque eles se tinham conhecido por causa da música. Sempre foi a música que os uniu. E cantou a música que ele mais gostava. E ele nada. Cantou uma, e outra, e outra vez. Quando começou a ficar rouca, forçou ainda mais a voz. Quando já não conseguia falar sequer, encostou-se ao caixão e murmurou o mais alto que conseguiu, mas não o suficiente para que alguém ouvisse para além dele: "I love you, but now it's time for you to turn into dust". E abraçou-o uma última vez. E virou-se para o lado oposto. Os familiares, amigos, conhecidos, e até aqueles que lá estavam só porque sim, ou porque queriam despedir-se dele porque ele merecia, pela vida que havia vivido, embora curta, choravam com Teresa, enquanto ela se afastava do seu noivo.
- Enterrem-no de uma vez por todas - disse, friamente.
150 pessoas na igreja levantaram-se para fechar o caixão e levá-lo. Mas apenas o seu pai, o irmão e o pai de Teresa e o seu melhor amigo se dirigiram ao caixão. As restantes 146 pessoas dirigiram-se lentamente, pé ante pé, para a rua, com Teresa. E acompanharam-na até ao cemitério.
Quando chegaram à cova, e estavam prestes a enterrar Pedro, Teresa exclamou "Esperem!". Abriu o caixão, e juntou ao seu amado a sua guitarra. Fechou o caixão e disse: "Já podem".
Enquanto os coveiros preparavam Pedro para se juntar a tantos outros que ali jaziam, Teresa deixou uma folha de papel escapar pelos seus dedos. Uma amiga de ambos os noivos aproximou-se da pré-campa de Pedro e conseguiu ainda ler "I've been roaming around always looking down at all I see" no cimo da folha e "And now it's time to leave and turn to dust" no fundo.

domingo

"Não estás bem a ver! Imagina a caderneta. Na capa vai estar uma foto do gajo!"

Podem ter sido 16 horas de espera infinitas, e escaldões e calor até mais não. Apesar de tudo digo-o sem a mínima dúvida: foram das melhores 16 horas da minha vida. E por mais 16 horas que venham aí, na minha vida, vai ser difícil arranjar muitas 16 horas tão boas ou melhores que estas. E digo, portanto, que quando morrer vou morrer feliz :). Obrigado (:.