domingo

Descalça-te. Não, a sério. Faz o que digo. Descalça-te. Sente o chão frio por baixo dos teus pés. Se estiveres sentado levanta-te. Deixa que o peso do teu corpo caia sobre os teus pés. Estás a sentir? Não consegues aguentar-te em pé, pois não? Pois bem, psicologicamente também te sentes assim.
Tiveste coragem. Tentaste. Era o que um bom pai faria. Era o que qualquer pessoa faria naquela situação. Um dia, tu amas a tua mulher acima de qualquer coisa. No dia a seguir, leva-la para o hospital, porque rebentaram as águas e está na hora de mais um milagre da vida. De seguida, ela pensa que tu a traíste, bate na tua filha e pede o divórcio. Ultimamente, pedes a custódia da tua pequena, e infelizmente, não a consegues, porque és um traidor mulherengo que certamente não será capaz de cuidar da filha.
Não. A tua vida está de pernas para o ar e tu não sabes o que fazer. Cantarias e tocarias, se ainda tivesses guitarra. Mas a outrora mulher dos teus sonhos (actualmente mulher dos teus pesadelos) tornou esse teu desejo impraticável. Ligar à tua filha, que é quem mais queres ouvir naquele momento, também não podes, porque ela não tem telemóvel próprio e quem vai atender o telefone fixo com certeza é a pessoa que menos queres ouvir. Então, tomas o proveito daquilo que tens fama. Vais a um bar, entras, e pedes um whisky duplo com gelo. Mas aquilo é demasiado fraco para ti, e tu percebes ainda mais isso quando chega um jovem (acompanhado pela namorada?) e ordena ao barmen que lhe sirva dois shots. Ele serve o casal e volta para o lava-loiça, para lavar uns poucos copos sobre os quais poisavam uns quantos pratos onde tinham sido servidos camarões ou algo do género. Nunca foste bom a distinguir mariscos, portanto ficas na dúvida. Enfim, após o compasso de espera em que observaste o homem, já com uns poucos cabelos brancos (como tu terás daqui a uns anos) a curvar-se diante da pia, a esfregar a sujidade que teimava a sair. Mas... Qual o interesse disso? Qual o interesse de ver um velho a lavar a loiça? Tal como aqueles utensílios de cozinha teimosos, a tua ex-mulher é como sujidade que teima em sair: por mais que tentes, ela não arreda pé. Às vezes, nem com desengordurante. Ou advogado. Enfim, chama-lhe o que quiseres.
Pedes, por fim, um shot. E mais outro. E outro, e outro, e outro. Quando dás por ti, já não estás em condições para conduzir. Ligas ao teu melhor amigo, que é um pouco mais novo que tu, mas ele rapidamente te despacha pois está a meio de uma boa queca. Não queres ligar aos teus pais porque eles estarão demasiado ocupados a curtir as férias no Algarve. Só te resta uma opção: o teu irmão. Que é igualmente o teu advogado. Porra, pensas. Estás lixado. Como é óbvio não vais ligar ao teu advogado a dizer que foste embebedar-te para um bar porque ele perdeu um caso. Porque já nem pensas no facto de ele ser o teu irmão.
A tua única solução é conduzires tu. Deixas o bar, por fim, e procuras as chaves lentamente no fundo do bolso direito dos calções. Quando vais para abrir o carro, paras para pensar. Mesmo bêbado, estás a conseguir estar minimamente lúcido. Se conduzires terás certamente um acidente. E aí, mesmo que sobrevivas, sabes que perdes a tua filha para sempre. Então, atiras-te ao chão. E deixas-te ali ficar. Porque o mais importante é teres a tua filha. Dormitas um pouco, ou alucinas, melhor dizendo. Mas lá está, a tua filha é o mais importante. Então, levantas-te do chão, ergues-te de uma só vez e dizes:
- Eu não vou desistir.
E abres o carro. E então...

Ligas o carro. Partes sem olhar para trás. Metes os headphones nos ouvidos. Ligas a música. Apesar de tudo, sabes que alguém te chama, mas não abres o vidro nem olhas pelo espelho retrovisor para confirmar. Só queres pressionar o pedal e seguir em frente. É isso que fazes. Mais uma vez, foges. Não olhas para trás. Partes sem olhar para trás. Tal como "no tempo dos assassinos", tens uma força que te faz seguir em frente. Pões músicas do disco do Jorge Palma a tocar. Do melhor álbum dele. Aquele álbum que te deixa a cabeça num sítio qualquer que nem os teus olhos vêem. Aquele lugar que a tua mente cria. Aquele lugar pacífico onde ouves o mar e os passarinhos a cantar. Aquele lugar verdejante cheio de pequenos bichos do mato que tentam alcançar-te. Alguns, conseguem ultrapassar a barreira que criaste, outros perdem-se no tempo, na passagem, no processo. Uns sabem que és indefeso e avançam. De alguns gostas, e deixa-los passar, até ao momento em que te apunhalam pelas costas. Outros, escondem-se nos alimentos, no pão nosso de cada dia, naquilo que te mantém vivo todos os dias da tua vida.

Mas encostas o carro, durante um pouco. Tu sabes quem te estava a chamar. Era o barmen. Ele sabia que tu beberas demasiado, e estava para te ir dizer que tomara a liberdade de te chamar um táxi. Mas não queres saber. Queres ir para casa, dormir e pôr-te sóbrio, para continuares na luta pelo que é teu por direito.
Metes o pé bruscamente no acelerador. Manténs uma velocidade constante de 80 km/h dentro de uma localidade. Do outro lado da estrada, repentinamente, aparece um carro, acabado de sair da curva, com os máximos ligados. A luz cega-te.

A tua vida continua, descrita em palavras. E agora? O que acontece agora? O que achas que acontece agora?

1 comentário:

Di disse...

Um tipíco argumento americano . Parabéns :')