segunda-feira

Às vezes tomamos as pessoas como certas. Não só as pessoas, também as coisas. Sempre tomaste o teu carro como uma coisa certa. Tu giravas o volante para a esquerda, ele reagia contigo, virava para a esquerda. Tu giravas o volante para a direita, ele reagia contigo, virava para a direita. Mas hoje, parecia que não eras só tu que estavas bêbado. Tu não te lembras de o ter visto ao teu lado, no bar, juras que não te lembras. Bem, talvez tenha sido gasosa a mais.
Mas pedes ao teu carro para fazer o 4, para o testares. E ele, para grande espanto teu, cai. Bem, não cai realmente, mas vai contra o carro que está na faixa contrária. E tu tens um acidente. E és levado para o hospital.
Já no hospital, tomas as coisas como certas. Dizes a ti mesmo que vais morrer, e que nunca mais irás ter a tua filha nos teus braços. E adormeces. De repente. Fechas os olhos e perdes a força.

Abres os olhos. Procuras o telemóvel. Está desligado, sem carga. Viras-te para o lado e perguntas ao senhor da cama ao lado:
- Desculpe, que dia é hoje?
Ele responde-te. Passaram 4 dias. Não sentes uma das pernas. Levantas o lençol e, por momentos, assustas-te. Mas fica tudo bem. A tua perna continua lá. Só que envolvida em gesso. A tentar sarar. Como se fosse o caule de uma folha.
Mas tu queres passar os pormenores à frente. Porque este é o capítulo mais difícil da tua vida. Porque tu sabes, a tua vida acaba. Como se fosse uma trilogia. E sabes, uma trilogia só tem três livros, e este é o último.
Pegas no carregador do teu telemóvel (alguém o deixou lá). Chamas uma enfermeira, e pedes que o ligue a uma ficha perto da cama. Ligas o telemóvel, e ligas para a tua ex-mulher. Estás à espera de lhe exigires que passe o telemóvel à tua filha. Alguém do outro lado atende e chama-te por "papá". Ficas feliz. E tudo está bem.
7 meses depois. Já estás recuperado, já começas a correr junto ao rio à noite, como fazias dantes, e a audiência final é agora. Hoje. Estás nervoso. Achas que não vais conseguir ter a tua menina para ti. Achas que não vais ter aquilo que mereces, por direito. Aquilo que é teu, por direito. Mas eis que o veredicto final chega. E o facto de a tua filha ter dito que queria viver contigo sai a teu favor.
Festejas. Sorris. Ris. Abraças a tua filha, agradeces ao teu irmão (que é também teu advogado, mas tu neste momento olhas para ele apenas como irmão).
Subitamente, olhas para a tua ex-mulher. Sim, está mesmo a acontecer. A tua ex-mulher está a chorar, coisa que já não acontecia há 500 anos, para aí desde que a tua filha nasceu. Talvez ela não seja assim tão má pessoa...
E olha. Ironia do destino. Sais do Tribunal, dizes à tua filha para esperar por ti com o tio, que tu vais buscar o carro para irem para casa. Olhas para um lado da estrada, olhas para o outro. Os teus olhos só vêem coisas boas e felizes. E passadeiras, onde elas não existem. E não vêem carros a aproximarem-se de ti, perigosamente.

A tua vida acaba agora, descrita em palavras. E tu não sabes porquê, nem nunca saberás. Só sabes que ainda tinhas tanto para viver. Ao lado daquilo que é teu. Ao lado das pessoas que mais amas no mundo. Ao pé da tua filha.

Dedicado à Ana e ao Miguel.

3 comentários:

ana silva disse...

amei amei amei amei amei!!

ana silva disse...

obrigada (:

Beatriz disse...

Ler os teus textos é um processo estranho. Começo por me encantar, por achar a história muito boa, bem como a escrita, e sem querer acabo por me afeiçoar às personagens. E sei que não tens por hábito escrever finais felizes, mas fico sempre na esperança de que não mates as personagens, porque elas não merecem. Estou sempre à espera que a escrita seja como um conto de fadas. Mas não.
Eu sei, que a vida não é justa. Mas acabo sempre por chegar ao final dos teus textos e pensar: "Porquê? Porque é que ele não podia ser feliz?"
Independentemente de tudo isto, continuo a adorar os teus textos :)