sábado

Episódio 4

A minha filha está a chegar à minha campa. Ela sabe o sítio exacto, até de olhos fechados. Já decorou quantos passos são necessários para lá chegar, até. E ela fala-me, sabendo que eu estou a ouvir.
"Olá pai. Já lá vão 12 anos. Trouxe-te estas flores. Das que tu costumavas dar à mãe. Girassóis. Ela contou-me, algum tempo depois de... mo-rre-res..., que quando eram mais novos costumavas dizer que ela era o teu sol. E cá estou eu, a oferecer-te girassóis, porque... tu eras o meu sol, e... pai, eu tenho tantas saudades tuas."
Ela não se aguenta mais. Chora como nunca alguém chorou e estende o seu corpo sobre a minha campa. O seu namorado, um rapaz até bem parecido, aproxima-se dela, ajoelha-se na areia e faz-lhe festas na cabeça. Ele parece ser boa pessoa, e certamente a vai fazer feliz. De certa forma, eles fazem-me lembrar eu e a minha ex-mulher. Quando éramos mais jovens, e ela ainda era boa pessoa.
E eis que ela me surpreende. Também me veio visitar. Talvez seja verdade, talvez ela agora seja melhor pessoa outra vez.
Tenho saudades de viver. De abraçar a minha filha, de a segurar nos meus braços, de lhe dar de comer, de lhe limpar as lágrimas quando chorava porque tinha caído ou simplesmente por uma briga com uma amiga. Não a ensinei a andar de bicicleta, não a ensinei a ler, não a ensinei a escrever, não a ensinei a tocar guitarra ou piano. E perdi tantos aniversários dela. Perdi tanta coisa. É que, acontece tanto nos primeiros anos de vida, na infância. O resto da vida parece só uma recta que de vez em quando muda para uma curva pouco acentuada, para depois voltar a recta. As coisas quando somos adultos parecem todas tão lineares. O nosso dia a dia, é sempre o mesmo. Não aprendemos nada, só ensinamos. Aos nossos filhos, a outras crianças (se somos professores). E a piada de viver parece que desaparece, e era assim que pensava antes de morrer, admito. Mas hoje, se é que posso chamar pensar a isto, se é que eu de alguma forma ainda existo, lamento imenso ter tido uma mente tão fechada. Ensinar pode parecer tedioso, mas na realidade, acho que é o melhor que há. Porque eu até ensinei alguma coisa à minha filha. Ensinei-a a falar. E isso deixou-me tão maravilhado. Parece um milagre, a fala. Aprender palavras. Construir frases. E eu lamento, a sério que lamento, não ter ensinado nada mais à minha filha. Nem a ensinei a defender-se. E as memórias tácteis que tenho dela são quando ela ainda era uma pequena criança indefesa e inocente.
Como eu lamento ter morrido. Mas é assim mesmo, a vida. Nasce-se, aprende-se, cria-se, ensina-se... e morre-se.

Continuas a descrever a tua vida, ou o que resta dela. E lamentas não poder fazer mais nada.

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