sábado

Episódio 6


Jazes debaixo da terra. O teu corpo, devorado pelos bichos da natureza, portanto, melhor dizendo, o que resta dele, há muito que é sugado pela gravidade sem dar resposta. A tua filha, relembra o dia em que foi o teu funeral, algo que a sua inexperiente mente não conseguia compreender.
"Querida, lembras-te quando o papá dizia que às vezes as flores murcham a tal ponto que não conseguimos mais recuperá-las?"
"Sim..."
"Foi isso que aconteceu com o papá."
"Mas o papá não é uma flor, e também não está murcho."
(murmuro) "Mas será um dia."
E tantos anos depois, a tua filha, apesar de já compreender a morte, não compreende porque tu foste afastado dela, tão de repente, tão cedo. Ela não percebe porque não teve os teus olhos para a guiarem num mundo tão complexo e perigoso. E ela sentiu-se desprotegida. Ela ainda se sente desprotegida.
E foi por isso que ela procurou, na cave de sua casa, uma caixa, na qual ela guardara objectos de infância. Incluindo A Carta. A Carta que "te escrevera" e guardara, quando tinha 14 anos.
E hoje, ela volta a ir pôr-te flores na campa, e lê-ta. Com fé que tu a oiças.
"Querido papá,
Lá na escola os professores dizem todos que sou muito esperta. Tiro boas notas, participo em todo o género de concursos, recebo diplomas de mérito. Já compreendo a morte, compreendo que a certa altura o coração e cérebro param e o ser humano morre, mas ainda assim... não compreendo porque tiveste tu que morrer. Não compreendo que ser egocêntrico és tu, que me deixas para vagueares pelo nada, onde nem leis da física haverão.
Vivo com os tios. Ainda vejo a mãe, uma vez por mês, mas não é com ela que me sinto em casa. Nem com os tios, mas com eles é diferente. O tio foi feito do mesmo sangue que tu foste feito, portanto de alguma maneira mórbida às vezes penso que ele é um zombie, e que esse zombie, por sua vez, és tu. E não te preocupes, eles educaram-me bem. Faço tarefas domésticas, faço a higiene pessoal, estudo.
Melhor! Inscreveram-me na música. Na guitarra, claro, tal como tu quiseste, um dia, para ti. Sinto-me bem feliz, com música nas mãos, com notas a fluirem-me dos dedos como se eu fosse uma caixinha de música. E por falar em caixinha de música, aquela que me deste quando era pequenina desapareceu. Fiquei mesmo triste quando me apercebi disso. Não sei como aconteceu, já obriguei a tia a virar a casa do avesso, mas a caixinha não dá sinais de vida. Mas ainda não desisti, ainda hei-de encontrá-la.
Sei que esperavas mais de mim, nesta carta. A verdade é que eu não consigo. Por mais que digam que sim, escrever cartas não ajuda tanto assim. Porque eu continuo a sentir falta das tuas mãos a passarem-me pela cabeça, os teus abraços e beijinhos antes de dormir. Sinto falta de acordar contigo a aconchegar-me a roupa da cama, antes de ires dormir, e de me dizeres que me adoras. E hoje lamento de nessas alturas ter continuado a fingir que dormia e não te ter respondido com um "e eu de ti, papá".
Está na hora. Tenho que ir. É quase meia-noite. Os tios já foram lá abaixo buscar o champagne. Resta-me tempo para te deixar um beijinho e um abraço por carta. Espero que haja alguma forma de receberes.
E pai, eu sinto tanto, mas tanto a tua falta.
A tua filha."
E ela vai para se ir embora, com os olhos feitos de lágrimas, e algo a detém. Volta para trás, deixa a carta por cima da tua campa e diz-te: "Estive estes anos todos a preparar-me para te deixar ir. Acho que infelizmente está na altura. Até a mãe já deixei ir, no ano passado. Só faltas tu. E eu não quero..." (faz uma pausa infinita) "Mas está na altura. Adeus, pai, podes ir. Abraça-me só mais uma vez, bem junto de ti."
E ela prepara-se para te deixar ir, mas antes deixa uma nota junto da carta: "At every occasion I'll be ready for a funeral".

Quem te dera que ainda tivesses vida. Quem te dera que não fosses apenas um saco de ossos. Quem te dera poderes agarrar a tua filha, abraçá-la e dizeres-lhe: "Filha, não tens que me deixar ir. Eu não vou a lado algum."

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