sexta-feira

Sketches from a dead man

Episódio 1
Episódio 2
Episódio 3

Já morri há algum tempo. Hoje, observo a minha filha e a sua vida de outro ponto. Um ponto nunca antes imaginável, um ponto que não existe, sequer. Podes tentar inventá-lo na tua cabeça, mas não me parece que o consigas desvendar. É impossível. Porque há coisas impossíveis. É uma coisa infeliz de se saber, é, mas há coisas impossíveis. Nós não queremos que isso seja verdade, mas... Não há outra forma.
Está tão crescida, a minha pequena. Para mim será sempre pequena, pois a última vez que a tive nos braços ela era ainda apenas uma criança. Hoje a mãe é boa pessoa, o meu irmão olha por ela como se fizesse o meu papel. E a minha filha? Até namorado tem. Coisa de gente grande, e a minha pequena já sabe o que é sentir mãos a agarrar outras como quem agarra o mundo, já beija outros lábios como quem experimenta algo nunca antes experimentado, mas sabendo que o que estão prestes a ter na boca é o melhor que existe.
Gosto do cabelo dela. É parecido com o da avó paterna. Gosto dos olhos dela, são parecidos com os olhos da mãe dela, senhora outrora dona do meu coração, agora dona de nada, nem de si mesma. Gosto do andar dela. Andar de quem perdeu o pai, que sempre amou e sempre sentirá bem junto dela, mas de quem sabe que não vale a pena chorar por ele. Porque ele não ia querer isso. E, de facto, não quero ver a minha filha a passar o resto da sua vida a chorar a minha morte. Lembro-me de quando lhe contava histórias, antes do deitar, e quando ela dizia que tinha medo de nunca mais me ouvir a contá-las eu dizer: "Se o algo acontecer ao papá, promete que não choras, sim? Lembra-te que seja como for, ele vai estar sempre a olhar por ti e a proteger-te".
Mas a verdade é: como é que explicamos a uma pequena indefesa e inocente criança o que é a morte e que ela pode perder o pai, pessoa por quem sente mais carinho, que ela pode chegar a qualquer momento e levar quem ela conseguir agarrar, com as suas presas fortes e destemidas? Não dizemos, não explicamos. E, por isso, ficamo-nos pelas pequenas formas de ir introduzindo o tema. O problema é que podemos nunca ter tempo de acabar de contar esta história. E foi isso que me aconteceu. E é pena eu não me ter lembrado de escrever uma carta, tipo testamento em que deixava nada que não memórias e palavras de conforto, para a minha filha. Pergunto-me, se é que eu penso, agora, porque não o fiz, porque fui tão burro a ponto de não ter pensado que podia ter acontecido.
Faz hoje uns anos que morri. Agora percebo porque a minha filha está vestida de preto e agarra o namorado como o seu mundo se fosse desmoronar. Porque vai. Porque ela vem-me visitar, e dizer que me ama. E sabe que eu vou ouvir, mas não vou poder responder.

E tu descreves a tua vida, ou o que resta dela, ou algo que não é possível identificar, mas que no fundo sabes que existe, porque estás a vivê-la. E a ver a tua filha. A coisa mais importante para ti em vida.

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